O PAPEL DAS TRIBOS NA FORMAÇÃO DA PRIMEIRA UMMAH

A formação da primeira Ummah, a comunidade muçulmana primitiva, foi um dos acontecimentos mais significativos da história islâmica. Este processo não surgiu de forma súbita, mas foi construído sobre as estruturas tribais árabes existentes, transformadas pelo Islão num modelo de fraternidade e justiça que ultrapassava laços de sangue e etnia.

A SOCIEDADE TRIBAL ANTES DO ISLÃO

Antes da revelação do Islão, a Península Arábica era composta por um mosaico de tribos independentes, como Quraysh, Aws, Khazraj, Banu Tamim e muitas outras. A identidade de cada pessoa estava profundamente ligada à sua tribo, e a lealdade tribal (ʿasabiyyah) era o eixo central da vida social.

As alianças, os conflitos e até os casamentos eram determinados por interesses tribais. A justiça baseava-se na vingança familiar e na honra do clã, e não em princípios universais.
Era uma sociedade fragmentada, com rivalidades constantes, como as guerras entre Aws e Khazraj, que duraram décadas antes da chegada do Profeta Muhammad (S.A.W.).

O Alcorão faz referência à condição de divisão antes do Islão:

"E apegai-vos, todos, ao vínculo com Deus e não vos dividais; recorda-vos das mercês de Deus para convosco, porquanto éreis adversários mútuos e Ele conciliou os vossos corações e, mercê de Sua graça, vos convertestes em verdadeiros irmãos; e quando estivestes à beira do abismo infernal, (Deus) dele vos salvou. Assim, Deus vos elucida os Seus versículos, para que vos ilumineis."

(Alcorão, 3:103)

A UNIDADE SOB O PROFETA MUHAMMAD (S.A.W.)

Quando o Profeta Muhammad (S.A.W.) iniciou a sua missão em Meca, o seu chamamento transcendia as fronteiras tribais. Ele convocava as pessoas à adoração de um só Deus (Allah) (S.W.T) e à construção de uma comunidade baseada na fé, na moral e na justiça, e não na linhagem.

Ao emigrar para Medina (Hijrah), o Profeta (S.A.W.) encontrou duas grandes tribos árabes, Aws e Khazraj, e três tribos judaicas: Banu Qaynuqa, Banu Nadir e Banu Qurayzah.
Entre os árabes, havia rivalidades antigas e feridas ainda abertas. O Profeta (S.A.W.) conseguiu reconciliá-los através do Islão, criando uma nova base de unidade: a Ummah.

A CONSTITUIÇÃO DE MEDINA: O PRIMEIRO MODELO DE UMA NAÇÃO

Logo após a Hijrah, o Profeta Muhammad (S.A.W.) estabeleceu um documento histórico conhecido como a Constituição de Medina (Sahifat al-Madinah). Este pacto regulava as relações entre as tribos muçulmanas e não muçulmanas, transformando a cidade-estado de Medina num modelo de convivência civilizada e justa.

Entre os seus princípios estavam:

• A unidade de todos os muçulmanos como uma só comunidade (Ummah wāḥidah);

• A defesa mútua contra inimigos;

• A liberdade de culto para os judeus;

• A resolução pacífica dos conflitos.

Assim, o Profeta (S.A.W.) substituiu o tribalismo pela irmandade na fé, tal como expressa o Alcorão:

"Sabe que os fiéis são irmãos uns dos outros; reconciliai, pois, os vossos irmãos, e temei a Deus, para vos mostrar misericórdia."

(Alcorão, 49:10)

O PAPEL DAS TRIBOS NA CONSOLIDAÇÃO DA UMMAH

Embora o Islão tenha superado a ʿasabiyyah (orgulho tribal), as tribos não desapareceram, foram reorientadas. O Profeta Muhammad (S.A.W.) aproveitou as suas estruturas de solidariedade e transformou-as em ferramentas de coesão e organização.

• Os Muhājirūn (emigrantes de Meca) e os Ansār (ajudantes de Medina) formaram o núcleo da primeira Ummah.

• O Profeta (S.A.W.) estabeleceu laços de irmandade (muʾākhāt) entre membros de diferentes tribos, unindo, por exemplo, um Muhājir e um Ansār, para reforçar a união social.

• As tribos árabes que se converteram posteriormente, como Banu Thaqif, Banu Tamim e Banu Hanifa, integraram-se na Ummah sem perderem a sua identidade, mas agora subordinadas à justiça e ao bem comum.

Este equilíbrio entre identidade tribal e lealdade religiosa foi uma das chaves do sucesso político e espiritual do Islão.

A DESCONSTRUÇÃO DO TRIBALISMO CEGO

O Profeta Muhammad (S.A.W.) combateu firmemente qualquer forma de tribalismo injusto. Ele disse:

"Quem se orgulha do seu tribalismo não é dos nossos."

(Sahih Muslim, nº 2589)

E também afirmou:

"Perguntei: Ó Mensageiro de Alá, o que é o espírito de  tribalismo? Ele respondeu: É ajudares o teu povo na injustiça."

(Sahih Abi Dawud, nº 5119)

Estas palavras mostram que o Islão não destruiu as tribos, mas purificou os seus valores, substituindo a lealdade ao sangue pela lealdade à fé.

O LEGADO NA HISTÓRIA ISLÂMICA

A organização tribal, orientada pelo Islão, serviu como estrutura administrativa e militar durante o governo do Profeta (S.A.W.) e dos Califas Rashidun.
Cada tribo desempenhava funções específicas, contribuindo para a expansão e consolidação da Ummah.

Mesmo nas conquistas posteriores, a noção de fraternidade islâmica prevaleceu sobre as rivalidades tribais. Foi este espírito que permitiu à Ummah crescer e integrar povos de diferentes etnias e culturas: árabes, persas, berberes, turcos, africanos e muitos outros, sob um mesmo credo e uma mesma lei.

O papel das tribos na formação da primeira Ummah foi crucial: elas forneceram as bases sociais e humanas que o Islão transformou em valores universais de justiça, fraternidade e fé.
O Profeta Muhammad (S.A.W.) não destruiu as tribos, elevou-as de comunidades baseadas na linhagem para uma nação unida pela adoração de Allah (S.W.T).

"Ó humanos, em verdade, Nós vos criamos de macho e fêmea e vos dividimos em povos e tribos, para reconhecerdes uns aos outros. Sabei que o mais honrado, dentre vós, ante Deus, é o mais temente. Sabei que Deus é Sapientíssimo e está bem inteirado."

(Alcorão, 49:13)

O Islão, assim, transformou a fragmentação tribal da Arábia numa sociedade de fé, igualdade e solidariedade, lançando as bases para uma civilização que marcaria profundamente a história da humanidade.